#21 Faz sentido começar assim?
Uma voz dentro da cabeça diz minutos depois que ela abre os olhos: "o dia precisa começar". Segundos antes, com olhos vidrados na tela do celular que para de piscar, ela se arrepende de desligar o despertador, sempre implacável na tarefa de começar o dia da pior maneira possível.
Toque estridente. Brilho na cara. Tudo cedo demais.
Mas o dia precisa começar e o mantra vem bem porque vem na voz daquela amiga de quem sempre sente saudades, amiga que é implacável em trazer frases que fazem pensar ou que reconfortam.
Aprendeu que saudade é algo bom, não sofrimento como alguns fazem pensar. Mas sabe que bom mesmo é matar a saudade. Tipo aquela ideia de que é bom trabalhar com o que se ama, mas bom mesmo é não precisar trabalhar — pelo menos não nesse sistema capitalista em que se trabalha para enriquecer uns poucos.
Saudade de gente é bom porque faz lembrar que tem gente boa no mundo, gente que a gente quer ver feliz. Saudade do passado é ruim porque faz parecer que o agora é ruim e que lá atrás era melhor. Mas a memória não é confiável, se fosse, não precisaríamos nos preocupar em lembrar que tem gente boa no mundo, sempre saberíamos.
Ela costuma dizer que depois que as pessoas morrem parece que viram santas, "agora é proibido falar mal?". Todo mundo doura a pílula e defeituoso mesmo é quem tá vivo. O curioso é que velho age como se não pudesse mudar, não pudesse ser uma pessoa melhor, deixa para melhorar depois de morto. Para quê se esforçar numa sexta-feira? Tudo começa na segunda.
Mas o dia, ah o dia precisa começar, seja qual for o nome dele: terça, domingo, quarta. Então é melhor procurar logo as pantufas e passar o café. Deixar para filosofar sobre a vida enquanto come e aí já vai otimizando o tempo — em vez de trabalhar enquanto eles dormem — te alimenta enquanto pensa. A exigência de produtividade ainda tá aí e o ponto não vai se bater sozinho nem as contas vão chegar já quitadas na caixa de entrada.
Mas a voz, aquela voz que vem bem, diz que o dia precisa começar porque o sol já nasceu e os olhos precisam mergulhar em outros olhos, a barriga precisa se aquecer com uma torrada de cacetinho e a bexiga precisa urgentemente ser esvaziada. e só isso que importa agora.
Este mês tem indicações de coisas legais por aí:
Assisti Retratos Fantasmas no cinema e agora ele tá chegando no streaming, gostei bastante de pensar a cidade junto com o Kleber Mendonça Filho.
A edição passada do Jornal da Universidade foi toda com matérias sobre questões relacionadas ao mês da consciência negra. Pessoas brancas, vale muito a leitura para refletirmos sobre a branquitude.
O Sul 21 está com um especial chamado Donos da Cidade, para quem não sabe, Porto Alegre está sendo vendida para construtoras e a gente não pode fechar os olhos.
Ainda no tema das cidades, recomendo esse texto do Drummond: A cidade sem meninos. (não achei aberto online, então dei meu jeito).