#27 Tudo isso faz sentido?
Eu não sei fazer tricô direito, os acabamentos sempre ficam meio tortos e os pontos apertados ou frouxos demais. Mas minhas mãos se mantêm ocupadas sem poder soltar e os pensamentos não podem ir tão longe assim porque, se eu perder a lã, tudo se desmancha.
Eu tricoto para manter as mãos ocupadas.
Não consigo elaborar os sentimentos escrevendo, desenhando ou fazendo qualquer coisa criativa agora. Não consigo me concentrar em nada por muito tempo. Então mantenho minhas mãos ocupadas a cada momento em que sinto meu coração acelerar e sinto o nó apertar na garganta, ele não tem afrouxado nem por um segundo no último mês, mas com a lã azul enrolando na agulha ele para de apertar por instantes.
são perdas coletivas e perdas individuais misturadas e confusas e grandes demais.
eu disse que não estou conseguindo elaborar nada escrevendo, mas eu queria manter um mínimo senso de controle e de normalidade pelo menos nesse aspecto da vida.
eu tricoto e eu cevo um mate.
eu cevo um mate como um ritual.
uma vida em suspenso, muitas vidas em suspenso.
mas um mate na mão e uma amizade para compartilhar o mate, o abraço, o medo, a indignação, o cuidado.
racionamento de água na cidade inteira e minha mãe cevando um mate na cozinha que voltou a ser minha por alguns dias porque meu bairro alagava. me assusto primeiro e me recomponho depois: aquela cuia representava o mínimo de conforto e de normalidade nos primeiros dias de maio.
na tv
o homem afirma que coletou água da calha — bem fervida — para fazer o chimarrão
a voluntária sugere que sejam doados kits chimarrão para as pessoas abrigadas
o mínimo de conforto e de normalidade nos dias que seguem
de volta em casa, esquento a água para mente entender que estamos seguras
…
mate:
substantivo
erva-mate, chimarrão;
"vamos cevar o mate".
mate:
verbo matar conjugado no imperativo afirmativo;
"mate o canalha que nos colocou nesta situação".
Escrevi esse texto na última semana de maio para ser enviado no final do mês, como de costume. Escrevi um parágrafo de explicações aqui porque não achei que consegui dizer o que queria ou nem sabia o que queria dizer. Pelo mesmo motivo, enrolei o envio até o último minuto: enviaria na tarde do dia 31 de maio. Mas não pude. Tudo ficou mais pesado pessoalmente nesse final de semana e o envio ficou em suspenso também. Até agora.
Escrevi esse texto aqui sobre minha avó, que faleceu na sexta-feira. Ano passado, também escrevi esse sobre ela. Para quem gosta da temática avós, tenho outros dois: sobre meu avô e sobre minha outra avó.
Sobre o que estamos passando, achei perfeito este texto da Júlia Dantas, se ainda não leu, recomendo. Além das tirinhas do Pablito Aguiar.
Espero que vocês estejam bem e que essa newsletter não seja apenas mais um texto aleatório chegando atrasado na caixa de entrada. Um beijo